OS DIREITOS DO CONSUMIDOR EM TEMPOS DE CANCELAMENTOS E ADIAMENTOS – A PANDEMIA SEGUE PRODUZINDO DISCUSSÕES JURÍDICAS.
Os direitos dos consumidores sempre geraram dúvidas em situações, por exemplo, de cancelamentos ou adiamentos de eventos, passagens áreas e hospedagens. Há quem pense que pode mais do que realmente tem direito e há quem desconheça seus direitos e arque com prejuízos que não podem ser imputados aos consumidores.
A pandemia de Covid-19 foi (e ainda é) um ingrediente a mais nesta confusão, pois além de ter provocado uma enxurrada de cancelamentos de eventos e viagens, também exigiu dos legisladores a criação de regras temporárias, que melhor acomodassem o equilíbrio e harmonia das relações entre consumidores e empresas fornecedoras.
De forma objetiva, tentaremos esclarecer quais os direitos nestas situações extremas, considerando os períodos, antes ou durante a pandemia.
As regras gerais estão previstas no Código de Defesa do Consumidor. A primeira norma a ser esclarecida é que compras realizadas à distância (internet, telefone) conferem o direito ao consumidor de arrependimento, no prazo de sete dias, devendo o valor pago ser integralmente restituído, sem qualquer penalidade. Isto vale para qualquer compra, inclusive de passagens áreas e hospedagens.
A norma manteve-se vigente durante todo o período de pandemia, salvo quanto às compras de produtos perecíveis ou medicamentos, para as quais a aplicação da regra ficou suspensa até 30.10.2020, conforme determinou o artigo 8º da Lei 14.010/2020, conhecida como Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado – RJET.
Ultrapassado o direito de arrependimento, falamos das hipóteses de cancelamentos por responsabilidade exclusiva dos fornecedores. Neste caso, se um evento é cancelado ou adiado, é direito do consumidor obter a restituição integral do valor pago; mesmo direito é válido para passagens aéreas ou hospedagens. No entanto, no período da pandemia, ainda que o cancelamento não tenha obviamente sido motivado pelos consumidores, também não era possível imputar responsabilidade exclusiva aos fornecedores. Surgiram, então, regras temporárias para regular as situações.
Para passagens aéreas, a Lei 14.034/20 previa que o cancelamento de voos entre 19.03 a 31.12.2020 daria direito ao consumidor de reembolso do valor integral, no prazo de 12 meses, a contar da data do voo cancelado. Posteriormente, a Lei 14.174/21 ampliou o período até 31.12.2021:
Art. 3º O reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, observadas a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente.
Cumpre esclarecer que “regulamentação vigente” é a Resolução 400 da ANAC, que prevê a assistência material que as companhias aéreas devem prestar aos passageiros em caso de cancelamentos de voos ou atrasos superiores a quatro horas.
As Leis 14.034/20 e a 14.174/21 também permitiam que consumidor opte pelo recebimento de crédito para uso no prazo de dezoito meses.
Para a hipótese de desistência do consumidor neste mesmo período, as Leis determinaram que o reembolso do valor pago também ocorresse no prazo de doze meses, mas com incidência das penalidades previstas, ou se o consumidor optasse pelo crédito para utilização em dezoito meses, não há aplicação de penalidade. É o que reza o parágrafo 3º do artigo 3º:
§ 3º O consumidor que desistir de voo com data de início no período entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 poderá optar por receber reembolso, na forma e no prazo previstos no caput deste artigo, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais, ou por obter crédito, perante o transportador, de valor correspondente ao da passagem aérea, sem incidência de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste artigo.
Da análise destas normas, percebe-se que é possível que alguém que tenha tido um voo cancelado em 2021 ainda não tenha sido restituído do valor pago.
Já para as hospedagens e eventos como shows e congressos, além de cinemas e teatros, houve a edição da Lei 14.046/20 regulando as desistências e cancelamentos durante a pandemia. Segundo a Lei, os cancelamentos que tenham ocorrido entre 01.01.2020 e 31.12.2021 não contarão com reembolso de valores pagos de imediato, desde que o fornecedor assegure a remarcação até 30.06.2022, sem qualquer custo adicional ou penalidade ao consumidor, ou disponibilize o crédito do valor total pago para ser utilizado até 31.12.2022, abatidos apenas valores referentes a serviços de agenciamento ou intermediação já prestados:
Art. 2º Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou
II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
(…)
§ 4º O crédito a que se refere o inciso II do caput deste artigo poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
§ 5º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, serão respeitados:
I – os valores e as condições dos serviços originalmente contratados; e
II – o prazo de 18 (dezoito) meses, contado da data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Para que fique claro, o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6 se encerrou em 31.12.2021.
A Lei 14.046/20 deixou claro também que estes cancelamentos e adiamentos não implicam indenização por dano moral ao consumidor.
O que a Lei 1.046/20 não deixou claro é o que ocorre se o consumidor não puder comparecer ao evento ou realizar a hospedagem por estar em isolamento por ter contraído ou por contato com alguém contaminado com COVID-19. Neste caso, entendemos que embora a lei não seja clara, ela também se aplicará.
Em 2022, entretanto, voltamos à zona cinzenta: as regras da Lei 14.046/20 não mais se aplicam, porém eventos continuam a ser cancelados em virtude da pandemia, principalmente por atos do Poder Público que reduzem público permitido em locais fechados.
Tal qual nos primeiros meses de pandemia em 2020, clamamos pela boa fé e equilíbrio nas relações: o consumidor não pode perder o que pagou, mas os fornecedores não podem arcar integralmente com o prejuízo. Remarcações de datas e/ou devoluções parceladas e sem outros ônus são opções que harmonizam a relação de consumo, atendendo aos princípios que regem o Direito do Consumidor no Brasil.
Em suma, temos:
PASSAGENS AÉREAS – canceladas pelas companhia aéreas:
DE 01/03/20 A 31/12/2021
· Reembolso integral até 12 meses a contar da data do voo cancelado;
· Crédito integral para uso em até 18 meses.
Após 31/12/2021
· Reembolso integral e dos valores pagos, em até 07 dias.
· Crédito integral para uso, em prazo não definido legalmente.
PASSAGENS AÉREAS canceladas pelo consumidor:
DE 01/03/20 A 31/12/2021
· Reembolso até 12 meses a contar da data do voo cancelado, com penalidades previstas;
· Crédito integral para uso em até 18 meses.
Após 31/12/2021
· Aplicação de regras tarifárias informadas no ato da compra
EVENTOS E HOSPEDAGENS – Cancelados pelos fornecedores:
DE 01/03/20 A 31/12/2021
Remarcação do serviço até 30.06.2022;
Crédito a ser utilizado até 31.12.2022, abatido valores de agências e intermediação;
Devolução dos valores pagos, em até 12 meses, se as hipóteses acima não forem possíveis.
Após 31/12/2021
Devolução integral e imediata dos valores pagos;
Tentativa de acordo, para disponibilização de créditos e/ou remarcações.
EVENTOS E HOSPEDAGENS – Impossibilidade de comparecimento do consumidor por contaminação/contato com covid-19:
DE 01/03/20 A 31/12/2021
Remarcação do serviço até 30.06.2022;
Crédito a ser utilizado até 31.12.2022, abatido valores de agências e intermediação;
Devolução dos valores pagos, em até 12 meses, se as hipóteses acima não forem possíveis.
Após 31/12/2021
Aplicação das regras previamente informadas ao consumidor;
Tentativa de acordo, para disponibilização de créditos e/ou remarcações.
Laís da Costa Tourinho
Sócia no Camardelli e Da Costa Tourinho Advocacia.
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